Compra ou absorção de tecnologia?
O desenvolvimento nacional tem sido o ponto fundamental de discussão no Governo Federal para tomadas de decisão na área de Defesa. Segundo a revista Isto É, pelos documentos vazados, a Boeing teria se comprometido com a Embraer a entregar o maior conjunto de offsets já oferecido pelos EUA a qualquer país não membro da OTAN. Além de prometer ingresso ao Brasil a mercados inacessíveis na área de Defesa, previa a construção conjunta de aviões de treinamento militar para pilotos que poderão, inclusive, serem vendidos para países da América Latina, e desenvolvimento de um jato de emprego multifuncional de quinta geração que poderia ser comercializado mundialmente. A Boeing se comprometeria também a abrir um centro tecnológico em território brasileiro.
Embora a aquisição
dos novos caças se oriente por uma decisão de Governo, a FAB precisa definir o
que pretende: é compra ou absorção tecnológica? Se for compra, que se opte pela
oferta mais barata; porém, se os quesitos absorção de tecnologia e mercado de
exportação pesarem em mesmo nível que o quesito custo, a oferta mais barata
pode, futuramente, sair mais cara.
Essa é uma questão
fundamental que precisa ser analisada pelos tomadores de decisão: se as ousadas
promessas da Boeing não são apenas parte da Estratégia Política dos Estados
Unidos para tirar os franceses das negociações na área de Defesa com o Brasil.
A História está aí
para quem quiser consultá-la. É preciso que os órgãos competentes tenham
sensibilidade nestas questões antes da tomada de decisão para a aquisição dos
caças.
Embora tal proposta
estadunidense se mostre interessante e alinhada aos interesses brasileiros, é
de suma importância que as autoridades políticas e de defesa analisem a
História dos Programas de Cooperação Tecnológica da FAB e avaliem se o que ela
tem a dizer se alinham com as promessas ou se confrontam com os interesses
políticos e/ou econômicos dos EUA.
Experiência da FAB em programas de aquisição tecnológica
Em 1978, as empresas
italianas Aeritalia e Macchi se envolveram em um consórcio para desenvolver
aeronaves de caça. Este consórcio denominou-se Aeritalia Macchi Experimental
(AMX). Buscava-se, em plena era dos caças multifuncionais de alto desempenho,
desenvolver caças de ataque leve, que seriam empregados em missões de
interdição, apoio aéreo aproximado e reconhecimento. Estas empresas acreditavam
que caças como o F-16, Tornado, Jaguar e Mirage F1, aeronaves multifuncionais
de alto desempenho, eram muito sofisticados para missões secundárias de apoio
aéreo aproximado tático em um cenário de conflito europeu. Desejavam assim,
desenvolver caças que, além de dispor de capacidade para operar em altas
velocidades subsônicas à baixa altitude em qualquer horário do dia e se
deslocassem de bases militares pouco aparelhadas e pistas danificadas,
dispusessem também de baixa assinatura em infravermelho e capacidade auto-defesa
propiciada por mísseis ar-ar, sistemas de contramedidas eletrônicas e canhões
integrados.Em 1979, a FAB convocou estas empresas interessada no seu projeto inovador de caça para um cenário de conflito sul americano. Em 1980, esta Força decidiu participar do Consórcio italiano e envolver a Embraer na construção de caças e na aquisição de know how para construção de aviões militares modernos. Ressalva-se que não era a primeira vez que a Embraer era envolvida em programas de aquisição de tecnologia de defesa com a Itália. Em 1971, a Embraer já se envolvido no programa de cooperação com a empresa italiana Aermarcchi para o desenvolvimento da aeronave Xavante. A fim de desenvolver um caça leve subsônico, a Embraer investiu cerca de 29% neste consórcio, enquanto que a Aermarcchi investiu cerca de 24% e a Aeritalia cerca de 46,3%.
Os caças AMX
italianos receberam capacete DASH 4 e bombas guiadas a IR Opher da empresa
israelense Elbit, rádio M3AR (Série 6000) da subsidiária alemã Rohde &
Schwarz, bombas guiadas a laser GBU-16 Paveway II da estadunidense Raytheon e
canhões M-61 A1 de 20 mm com 6 canos giratórios da estadunidense General
Electric. Já no desenvolvimento dos caças brasileiros, além da Embraer, que
criou uma subsidiária para atender as necessidades do programa de cooperação, a
Embraer Divisão de Equipamentos, a FAB também envolveu as empresas brasileiras
Mectron, Eletromecânica Celma e Aeroeletrônica no programa de cooperação.
Em 1986, iniciou-se a
produção inicial em série de 30 AMX, dos quais 21 caças ficaram com as empresas
italianas e 9 caças ficaram com a FAB. Dos seis protótipos, dois vieram para o
Brasil. Calculou-se, na época, que o custo médio de cada aeronave para a FAB
chegou a ser de aproximadamente U$50 milhões, inclusos os gastos de engenharia
e desenvolvimento. Criticava-se, tanto no Brasil quanto na Itália, os custos,
atrasos no desenvolvimento do programa e a eficiência de emprego desses caças.
Elementos de análise para os tomadores de decisão:
Buscarei elencar aqui
alguns elementos de análise apontados pela História para que tomemos como lição
para os futuros programas de cooperação tecnológica na área de Defesa:
(1) Quando os
brasileiros decidiram participar do consórcio, os empresários italianos já
estavam engajados no desenvolvimento de um caça de ataque com escopo já
praticamente definido.
(2) A pouca
experiência da FAB em participar de programas de cooperação com alta tecnologia
agregada conduziu a Força acreditar que, após a na assinatura do Memorando de
Entendimento (MOU), não haveria maiores resistências em modificar o escopo do
projeto de caça.
(3) As inúmeras
alterações pedidas pela FAB durante o desenvolvimento do programa de cooperação
e os atrasos nos repasses financeiros elevaram exageradamente os custos da
aeronave.
(4) Neste período
crítico da década de 1990, as linhas de montagem se encontravam praticamente
paralizadas por falta de peças.
(5) As entregas dos
AMX se iniciaram em outubro de 1989 e só se encerraram em 1999. O
contingenciamento orçamentário da FAB foi o principal motivo para a demora na
entrega das unidades.
(6) Apenas o quarto e
o sexto protótipos eram brasileiros. O quarto protótipo realizou seu primeiro
voo em espaço aéreo brasileiro em outubro de 1985, em São José dos Campos, em
São Paulo, O sexto protótipo realizou seu primeiro voo no Brasil, em dezembro
de 1986. O único piloto de teste brasileiro foi Luiz Cabral, funcionário da
Embraer. Embora o Brasil já contasse com pilotos de teste com qualificação para
ensaios em voo no exterior, como o major-aviador Aldo Vieira da Rosa (pioneiro
nesta área), o major-aviador José Mariotto Ferreira e o engenheiro Michel Cury,
a FAB não dispunha de um centro especializado em qualificação para ensaio em
voo em território nacional. Somente em 1986, o Comando-Geral de Tecnologia
Aeroespacial (CTA), em São José dos Campos, criou o curso de ensaios em voo
para formar pilotos e engenheiros qualificados em planejar, executar e
gerenciar atividades de ensaios em voos experimentais. Apesar de, desde 1987, o
CTA formar pilotos de testes, somente em 2004, este curso obteve reconhecimento
da Society of Experimental Test Pilots (SETP), tornando o Brasil o único país
na América do Sul a ter este curso reconhecido internacionalmente.
(7) Ao longo das
décadas de 1980 e 1990, o Brasil sofria uma grave crise econômica. Em função do
delicado período político que o País experimentava, a Defesa tinha importância
secundária na agenda governamental. Com orçamento contingenciado pelas
oscilações da política e da economia nacional, a Embraer foi forçada a demitir
3.994 funcionários só em 1990. Aproximadamente 30% do quadro de funcionários da
empresa foram demitidos. Nos anos seguintes, mais funcionários foram demitidos
pela empresa.
(8) A Embraer
acreditava que o AMX seria um sucesso de exportação na América do Sul. O custo
deste modelo de caça tornou-se muito caro para o período de crise da época.
Embora com ênfase em ataques ar-superfície, os jatos de treinamento militar
britânicos Hawk tiveram maior êxito comercial do que os caças AMX. O único país
que se mostrou interessado em adquirir 12 unidades do AMX foi a Venezuela. No
entanto, por pressão dos Estados Unidos, a Embraer ficou impedida de vender os
caças para aquele país.
(9) A Embraer
desenvolveu as asas e profundores, tomadas de ar, cabides, trens de pouso,
tanques de combustível, pallet de reconhecimento, motores Rolls-Royce Spey Mk
807 sob licença e instalação de canhões nacionais. Ressalva-se que os EUA
vetaram o fornecimento dos canhões M-61 A1 de 20 mm com 6 canos
giratórios(sistema Gatling), da GE para os caças da Embraer.
(10) Por último,
acredita-se que, embora o AMX tenha inovado em conceitos operacionais a FAB, a
instável e isolada burocracia interna da Embraer, mesmo após a privatização,
não criou uma política de valorização de recursos humanos estratégicos; o que
permitiu que engenheiros e pilotos que participaram de grandes programas de
cooperação tecnológica da FAB tivessem sua mão de obra absorvida pelo mercado
mundial, abandonassem a área de Defesa ou fossem absorvidos por outras empresas
nacionais. Após a privatização da empresa, em dezembro de 1994, a Embraer
concentrou seu trabalho na aviação regional e na constituição de parcerias
empresariais internacionais, comoa EADS, a Dassault, a Thales e a Snecma. Na
área de Defesa, apesar do sucesso dos jatos de treinamento militar Super
Tucanos, o fato desta aeronave dispor de componentes estadunidenses, sua
comercialização está sujeita aos interesses dos EUA, como já mencionado.
Rumo ao domínio tecnológico para produção de caças
Em função destes
elementos de análise citados no programa de cooperação AMX, acredita-se que o
Brasil perdeu uma excelente oportunidade de absorver o conhecimento necessário
para construir sozinho um avião de caça de superioridade aérea. Fundamental que
os gestores dos contratos tecnológicos da FAB e das empresas brasileiras se
conscientizem de que, somente após definido o projeto de caça desejado, sejam
fechados os contratos com a empresa internacional escolhida. Isso reduzirá o
tempo de desenvolvimento e de entrega das aeronaves e, principalmente, reduzirá
os custos de investimento no Programa de Cooperação Tecnológica.
Importante considerar
que o reduzido avanço na capacitação técnica nacional, tanto na FAB quanto nas
indústrias envolvidas, deve ser relativizado. Embora as empresas envolvidas não
sejam capazes ainda hoje de produzir sozinhas algumas das tecnologias
absorvidas do Consórcio AMX, como as bombas guiadas a laser, é importante
considerar os avanços tecnológicos de bombas guiadas que os futuros caças da
FAB podem dispor a partir das indústrias nacionais.
O desenvolvimento da
bomba guiada por sistemas de navegação inercial e por GPS nacional, a SMKB, é o
retrato da capacidade de inovação das indústrias brasileiras. Esta bomba guiada
está sendo produzida por meio da união das empresas brasileiras Britanite
Defence Systems (agora chamada EAQ, membro do grupo SDS Synergy Defesa &
Segurança), com a Mectron, atual
Organizações Odebrecht, desde novembro de 2009. Enquanto a EAQ se encarrega do
projeto, dos componentes mecânicos e pela comercialização, a Mectron se
encarrega de desenvolver os conjuntos e subconjuntos eletrônicos, como o
sistema de guiagem destas bombas.
Se o desenvolvimento
tecnológico brasileiro é prioritário na decisão da aquisição dos caças para a
FAB, diante da História, o que devemos sempre nos perguntar é até que ponto vai
o interesse dos EUA em manter as suas promessas, se já, em muitos outros
momentos da História, impediram este desenvolvimento. Neste quesito, ao que
parece, tanto o Gripen quanto o Rafale atendem as necessidades da indústria
nacional. Como já discutido, se exportar também faz parte dos objetivos futuros
da Embraer, nem a Boeing nem a Saab, a qual também conta com tecnologia
estadunidense, lhe propiciará isso. Haja visto, como já mencionado os canhões
da GE para a Embraer e os Super Tucanos para a Venezuela, vetados pelos EUA. A
comercialização de tecnologias com participação dos EUA sempre está
condicionada a política deste País.
Conclui-se que, a FAB
deve escolher um caça que lhe permitirá dominar todo o ciclo tecnológico. A
inovação tecnológica será garantida com a combinação do que os engenheiros e
técnicos brasileiros já absorveram de outros programas de cooperação
tecnológicos com o que aprenderá se envolvendo neste novo projeto de caça. Nada
impede que a FAB tenha um modelo de caça próprio e que, paralelamente, a
Embraer desenvolva outro modelo de caça de combate voltado para exportação.
O alto custo de
investimento numa aeronave pode ser recompensado tanto por meio dos offsets
recebidos pelas indústrias nacionais quanto por meio da própria exportação das
aeronaves. É importante ressalvar que, se os nossos técnicos e engenheiros não
são capazes de acompanhar o nível tecnológico de aeronaves de quinta geração, é
preferível que a FAB adquira uma aeronave de tecnologia mais antiga, a qual os
engenheiros e técnicos brasileiros tenham condições de acompanhar e
desenvolver. Caso contrário, o custo de uma aquisição tecnológica sairá ainda
mais caro para os cofres públicos.
A França, além de
dominar tecnologias estratégicas na área de Defesa, tem se comprometido
política, militar e estrategicamente, em contribuir com a maior projeção
brasileira no sistema internacional. Como afirmou o primeiro-ministro francês
Georges Clemenceau (1841-1929), “a guerra é um assunto muito importante para
ser deixado a cargo dos Generais”. Não cabe aqui julgar se o Rafale permitirá
ou não a Embraer absorver a capacidade de desenvolver sozinha novos caças de
combate aéreo no futuro, mas desconsiderar a História é torná-la cíclica.
Que os tomadores de
decisão considerem questões como as que foram expostas ao fecharem o grande
acordo para a aquisição de 36 caças para a FAB. Lembrem-se de que, no total dos
120 caças de combate aéreo necessários para a Força, previstos na Estratégia
Nacional de Defesa, um dia, num futuro muito próximo, teremos que ser capazes
de projetar, construir, operar e manter os nossos próprios caças.
A DEFESA EM DEBATE
Nam et ipsa scientia potestas est
Fernanda Corrêa
Historiadora, estrategista e pesquisadora do
Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense.
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